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domingo, 5 de junho de 2016

Para que serve o Correio da Manhã


O leitor, que gosta de ler - caso contrário não estaria neste momento a ler esta crónica menor - que lê compulsivamente, de tal forma que, quando na sanita, não tendo mais nada à mão, lê rótulos de sabonetes e livros de instruções de máquinas de barbear; 
O leitor que, por  se dar a ler este cronista menor, deve ser de geração próxima e, tal como ele, já deve viver atado por arames, com colesterol alto, tensão alta, fígado gordo, dores nas costas, intestino irritado, próteses dentárias, ouvido direito, pouco, óculos progressivos. 
O leitor já deve ser experiente em horas de espera em consultórios médicos. A gente entra, dirige-se ao balcão - o doutor hoje está atrasado! Senta-se numa cadeira de plástico desconfortável e começa a olhar para a mesinha que tem revistas. Uma é da ordem dos especialistas do ramo, outra é do anuário duma grande farmacêutica, outra duma instituição de toxicodependentes, com sorte encontrará uma revista do ano passado que um paciente, como nós, ali deixou por esquecimento. A gente paga quarenta, oitenta, cem euros de consulta, mas não há atenção orçamental para uma revista da semana, um jornal diário ou um diário do Torga! E o doutor, claro, é bom, tem tempo de espera! Olha se fosse no Centro de Saúde! Já estaria meia  sala a rogar pragas às funcionárias, aos médicos e ao estado! Mas ali não! A gente paga bem! O médico é bom! Tem de se esperar e bufar pouco!
E foi assim que fui para ao consultório de doutor Serra da Neves, neurologista, 1º esq, dizia a tabuleta de acrílico na entrada do prédio! É o melhor de Coimbra! Assegurou-me a minha cunhada. E é muito atencioso! Muito acessível! A gente fala com ele, ele entende-nos e nós entende-mo-lo! Fala assim como nós! Até diz umas cachaporras se for preciso!
O médico era diferente sim senhor! Além das literaturas já contadas tinha também um diário da casa, via-se que o era pela abundância de edições pousadas pela sala. E adivinhem que diário era? O Correio da Manhã! Pois claro! Um médico que escolhe o Correio da Manhã para entreter os seus pacientes, não é um varre merdas qualquer!
E assim entrei eu, ao fim de três horas e meia de espera, às oito já passadas.
- Feche a porta!
Mexia em papéis com uma facilidade incomparável com que arrastava o rato do computador!
- Então diga lá senhor João o que o traz por cá!
- Ó senhor doutor eu ando todo abrasado!
- A falar assim, pelos vistos anda!
- Como assim doutor?!
- Ó homem, não utilize essa linguagem arcaica! Diga "estou todo fo...!"
E lá começou a minha primeira e última consulta de neurologia, com o registo do histórico da minha ascendência: Pai morreu com que idade? Mãe foi mãe aos quantos? Avô tinha algum defeito? Avó era baixa ou alta? Primeira relação sexual? Primeiro filho? Quando começou a sentir-se assim?!
- Assim como, doutor?!
- Ah isso não é nada! Tenha calma! Isto da neurologia tem muito a ver com os nervos da pessoa! O senhor bebe?!
- Um copito de tinto senhor doutor!
- Então olhe, quando se sentir enervado, beba um bom brandy! Isso acalma!
E, assim, saí  em direção ao balcão para puxar pelos cem euros!
- Diga-me menina, quantos doentes o senhor doutor já atendeu hoje?!
- Mais duma dúzia! Porquê?
- Mais de mil e duzentos euros! A menina ganha o ordenado mínimo?
- O senhor não está bom!
- Ora menina! Se estivesse bom não estaria aqui! Posso levar o Correio da Manhã de ontem?
- Tenho de perguntar ao doutor! Para que o quer?
- Logo vi que a menina era esperta! Diga-lhe só que não é para ler! Como não uso a linguagem dele, diga-lhe apenas que o levo porque o papel higiénico está caro!... E, dito isto, desci ao rés do chão, entrei no café e bebi um brandy!

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