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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Dos problemas laborais ao ataque à democracia

 - Edição Nº2201  -  4-2-2016

Jornalistas e jornalismo
Dos problemas laborais ao ataque à democracia
A situação laboral dos jornalistas portugueses está a atravessar um dos mais graves períodos dos últimos anos. As salas de redacção cada vez têm menos profissionais e a maior parte dos que ficam vêem as condições de trabalho piorar. Mas a fragilização dos jornalistas, e consequentemente do jornalismo, não os afecta apenas a eles mas também a todos os portugueses, assim privados – como se não bastassem razões de natureza mais profunda, de natureza política, económica e ideológica – de uma informação independente, contextualizada, rigorosa e pluralista. O que está em causa não é apenas um grupo profissional, é também a qualidade da democracia.



Só nos tempos mais recentes, saíram da Global Media News (ex-Controlinvest), proprietária, nomeadamente, do Diário de Notícias, Jornal de Notícias, O Jogo e TSF, cerca de 70 profissionais; do Sol e do i mais de 60, da Agência Lusa 22, do Público 28, da Impala 29 (revistas Maria, TV 7 Dias, Nova Gente e outras) e da Cofina 8 (Correio da Manhã, RecordJornal de Negócios, CMTV). Na RTP decorre um processo de saídas voluntárias.
O número de activos desceu, entre 2007 e 2014, de 6839 para 5621, o que significa o «desaparecimento» de 1218 jornalistas em sete anos, quase 20 por cento. A maior parte devido a despedimento, ainda que alguns sob a forma de «rescisão amigável», outros porque resolveram mudar de vida…
A precariedade alastra, assumindo várias máscaras, nomeadamente: contratos a prazo ou de prestação de serviços, falsos recibos verdes, utilização sucessiva de estagiários, pagamentos não superiores ao salário mínimo, utilização de estagiários curriculares para a ocupação de postos de trabalho.
Há poucas semanas, na cerimónia de entrega dos Prémios Gazeta, o galardoado com o prémio Revelação (destinado a jovens com título profissional com menos de 30 anos de idade e não mais de dois anos de profissão) afirmou: «A precariedade assusta, mete medo. O desemprego ganha contornos de fobia. Estarei a ser dramático? Vim hoje aqui receber um prémio cujo último vencedor que conseguiu ficar a trabalhar a tempo inteiro, em Portugal, foi o de 2008».
Mais de 43 por cento dos jornalistas contratados, a grande maioria com licenciatura na área, auferem menos de 1000 euros de salário mensal, incluindo muitos com mais de uma década de profissão. No Diário Económico, onde os salários têm sido pagos com atraso, as receitas estiveram várias semanas penhoradas pelo Fisco.
Não deixam de se acentuar as pressões, limitações, intimidações e mesmo proibições da actividade nas empresas das estruturas representativas dos trabalhadores, nomeadamente Conselhos de Redacção, delegados sindicais, comissões de trabalhadores.
Os interesses de quem pode e manda
Estes dados mostram até que ponto o profissionalismo jornalístico está ameaçado na sua identidade e na sua essência. O emagrecimento e a fragilização das redacções levam necessariamente à diminuição de condições, objectivas e subjectivas, para a existência de uma prática jornalística que cumpra a sua função social, enquanto elemento indispensável à informação e formação das pessoas e à própria qualidade da vida democrática.
Mas não são apenas os estritos constrangimentos de natureza laboral que têm de ser considerados. No quadro da dupla lógica que nas sociedades capitalistas enforma – e deforma – a actividade jornalística, a lógica comercial, gerada pelos imperativos económicos a que os media estão subordinados, e que transparece mais ou menos ostensivamente nos «critérios jornalísticos» de selecção e de apresentação da informação, opõe-se e impõe-se frontalmente à lógica informativa, reflectida nos estatutos profissionais, nas normas deontológicas e nos livros de estilo, e alimentada pela própria consciência cívica dos jornalistas enquanto cidadãos, pelo menos daqueles que têm clara noção da especial responsabilidade social da profissão.
Por um lado, torna-se flagrante a submissão da actividade jornalística às leis do mercado, com reflexos visíveis, nomeadamente, na importância dominante adquirida pela conquista das audiências, não na saudável perspectiva de ser útil ao público, mas enquanto sinónimo do almejado aumento das receitas publicitárias. Sabe-se em que medida esta mera sujeição das estratégias informativas às estratégias comerciais leva ao sensacionalismo, à superficialidade, à informação-espectáculo e à manipulação.
Por outro lado, acentua-se a conjugação destes objectivos com um outro: a utilização dos media como instrumento de influência política e ideológica ao serviço dos interesses não só do grande capital, mas também das estratégias globais do imperialismo, conforme é visível nos temas, nas fontes e nas abordagens do noticiário internacional.
Efeitos perversos
Em toda esta situação, os grupos económicos proprietários da quase totalidade dos media de maior influência – na imprensa, na rádio, na televisão e no digital – assumem, obviamente, um papel determinante. A mercantilização da informação que lhes é inerente traz consigo efeitos perversos que têm directamente a ver com o trabalho jornalístico.
As operações de despejo de jornalistas das salas de redacção são «compensadas» pela crescente presença ou influência – melhor dito: interferência – na produção da informação de novo tipo de intervenientes, pertencentes ou não aos quadros das próprias empresas. Falamos de utilizadores ou condicionadores dos conteúdos e dos formatos jornalísticos mas alheios à ética e aos princípios que lhes são próprios – gestores, consultores, publicitários, especialistas de marketing e de promoção de vendas, etc., a que há que somar o peso crescente das empresas de comunicação e de assessoria, por vezes com representação directa entre os próprios jornalistas com maiores responsabilidades editoriais.
Para já não falar nos omnipresentes comentadores – alguns provenientes do campo jornalístico – apresentados ou implicitamente supostos como «independentes», mas que muitas vezes mais se assemelham a meros agentes de propaganda do arsenal ideológico da direita e do imperialismo.
O jornalismo de investigação praticamente desapareceu dos jornais, mas aumenta a presença da chamada «publicidade redigida», frequentemente mal se distinguindo, mesmo graficamente, do material noticioso (por exemplo em temas como o turismo, a restauração, a saúde, as novas tecnologias), ao mesmo tempo que ganha contornos mais sofisticados um produto mediático em que informação, publicidade, ficção e entretenimento se combinam em doses variadas. Multiplicam-se as promoções reciprocas entre órgãos do mesmo grupo (por exemplo Diário de Notícias/Jornal de Notícias/TSF, ou SIC/Expresso/Visão), com citações e remissões mútuas, geralmente motivadas não pelo interesse dos temas ou das abordagens mas pela exploração de sinergias com base em interesses comerciais.
Cultura profissional ameaçada
O predomínio da lógica comercial acarreta graves consequências para o exercício do jornalismo, num processo que, conforme já então sublinhávamos, se vem agravando progressivamente desde há mais de duas décadas.1 Tornam-se dominantes concepções como a de vender notícias, a notícia como mercadoria e não como bem social; instala-se a concorrência desenfreada e a busca obsessiva da cacha, da notícia em primeira-mão, a que se juntam, por necessidade e contaminação do online, a falta de tempo, a imediatez acrítica, que demasiadas vezes levam à precipitação e à desinformação.
Assiste-se a uma evolução perversa da cultura professional: muitos jornalistas estão a interiorizar (ou a aceitar, em defesa do posto de trabalho…) os princípios da concorrência comercial, transfigurando-os em concorrência jornalística e assumindo-a como saudável emulação profissional; os imperativos próprios da concorrência entre empresas ganham estatuto de normas e técnicas específicas da prática profissional.
A disputa entre os jornalistas na corrida pela notícia em primeira mão, muitas vezes pondo em causa regras essenciais como o cruzamento das fontes, a confirmação dos factos e o respeito por outras normas deontológicas, surge não como o resultado do interesse legítimo, louvável e prioritário em servir o público, mas sim como a transposição para o plano jornalístico daquilo que são os interesses comerciais das empresas e, por vezes simultaneamente, também os interesses político-ideológicos da classe dominante – que domina os media… dominantes.
Não há nenhum jornalista que não esteja interessado no êxito económico da empresa onde trabalha, e esta, para sobreviver, tem que dar lucro. Mas os princípios profissionais não podem (não devem…) ser sacrificados à falta de regras patronais. Os jornalistas têm um Código Deontológico, por eles elaborado, discutido e aprovado; mas para a generalidade dos que mandam nos grandes media essa coisa da deontologia jornalística é algo de estranho ao negócio, ou então é «esquecida» ou «relativizada».
O lugar central dos media
Os jornalistas são trabalhadores como outros quaisquer e, neste sentido, os seus problemas laborais não merecem nem mais nem menos relevância. Mas o lugar dos mediana sociedade, com influência decisiva na informação, formação e capacidade de decisão das pessoas, justificam a particular importância que lhes deve ser dada.
A comunicação social é um factor determinante, desde logo, nos comportamentos e opções políticas, incluindo eleitorais, dos portugueses – veja-se o verdadeiro massacre de comentadores de direita e alinhados com as estratégias do imperialismo a que temos estado sujeitos ao longo de todo o processo de recuperação capitalista. Particularmente nos últimos meses de campanhas eleitorais, que, aliás, fizeram vir à luz do dia a verdadeira essência reaccionária, e mais especificamente anticomunista, de alguns opinadores. E também de certos membros da elite jornalística, que só pela forma como fazem as perguntas e orientam os debates denunciam claramente de que lado estão…
Sublinhe-se que os media, particularmente a televisão – e para citar apenas três aspectos – fornecem conhecimento, em tanto maior escala quanto maiores forem os níveis de iliteracia e menores os de educação e cultura dos receptores; estabelecem a agenda do que as pessoas pensam e da forma como o devem pensar, não só na política como no resto; dão notoriedade e facilitam os desempenhos a quem é dada oportunidade de frequentar os estúdios com frequência, colocando em desvantagem os que raramente são convidados.
A influência não se exerce apenas pelos telejornais e outros programas, ditos de informação ou não, mas também por outras formas mais ou menos «visíveis». Por exemplo, ninguém hoje tem dúvidas do papel decisivo que as duas décadas de protagonismo televisivo de Marcelo Rebelo de Sousa tiveram na sua eleição para a Presidência. Mas vejamos outro exemplo menos óbvio: durante a campanha para as legislativas, a realização do debate televisivo entre António Costa e Passos Coelho foi amplamente promovida nos dias anteriores, o que é normal; menos normal, porém, foi o como: as imagens dos dois protagonistas apareciam acompanhadas pela tão apelativa como enganadora frase «um deles será 1.º ministro!» É legítimo admitir que esta falsidade terá levado muita gente menos informado a aderir à rábula hipócrita acerca de quem, perante os resultados eleitorais, tinha direito a formar governo. Para muitos, a «verdade» televisiva, que era também a da direita, impôs-se à realidade constitucional…

1 Ver «Jornalistas: crise de identidade e novo paradigma», in As Ciências da Comunicação na Viragem do Século, org. José Bragança de Miranda e José Frederico da Silveira, Actas do 1.º Congresso da SOPCON – Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (1999), Vega, 2002.


Fernando Correia 

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