A cultura é dos subalternos
António
Guerreiro
Público 13/11/2015
(aqui)
Temos os jornais, a televisão por
satélite e por cabo, o Google, o facebook, estamos imersos no mundo da
informação e a esfera pública alargou-se tanto que já engloba territórios
consideráveis do espaço privado. No entanto, ao contrário do que tinha sido
previsto e anunciado, é hoje evidente que nada disto permite a realização da
ideia de uma sociedade civil a proliferar por si mesma, nem de uma esfera
pública definida pela transparência e pela ideia emancipadora de socialização
da cultura. Fixando-nos em latitudes muito portuguesas, podemos hoje perceber
que há uma preocupante hegemonia de uma subcultura e de tudo o que opera no
sentido do abaixamento e da degradação. Refiro-me a este curioso fenómeno:
o discurso e o debate, os temas e as questões que circulam rapidamente e em
larga escala no espaço público são determinados pelos centros de irradiação de
uma cultura acrítica e de massa, aquela que – escreveu uma vez um heterodoxo
matemático e filósofo francês, Gilles Châtelet – se aplica a “devorar o
Diferente, para cagar o Mesmo”. Ou seja, são os escritores subalternos, os
animadores da televisão e os profissionais da idiotice impressa ou
teledifundida, munidos de um vasto arsenal de instrumentos, que se tornaram os
grandes mediadores. É através deles que se acendem as discussões políticas,
ideológicas, culturais, à medida do exíguo espaço mental e da lógica do fait
divers de onde nasceram. Por isso, parece que estamos sempre imersos numa
tagarelice de filisteus. Esta guarda avançada colocou na sombra e em lugar
recuado as elites universitárias das ciências sociais e humanas (as ciências
exactas, por razões explicáveis, foram sempre avessas à “publicidade”, no
sentido mais próprio do termo). Não é que a virtude e o saber estejam apenas
desse lado. Longe disso, e devemos ser muito críticos em relação a qualquer
reivindicação de superioridade e exclusividade vinda daí. Mas certamente que
também não estão em exclusivo do outro lado, como parece o caso. Há hoje um
défice enorme, em Portugal, da palavra vinda do interior dos vários campos do
saber, seja porque ninguém a quer ouvir, seja porque as condições adversas
obrigaram a uma retracção. Veja-se um exemplo que me impressionou bastante:
este Verão, no final de Agosto, morreu um dos maiores cientistas sociais que
Portugal alguma vez teve, o sociólogo Hermínio Martins, e em termos públicos o
silêncio foi quase total. Aquele homem morreu quase como um desconhecido nos
meios “profanos”. Os media gostam é de sociólogos espontâneos, de atrevidos
repórteres sociais ou de quem faz sociologia para uso jornalístico. E assim se
escancararam as portas aos “grandes redutores”. Mas, mais do que um retracção
forçada, existe mesmo por parte destas elites uma tendência para entrar na
tagarelice e fazer o seu jogo. Há de facto demasiada mistura e indistinção
entre a alta cultura e esta subcultura produzida ou induzida pelos media, de
tal modo que deixámos de saber quem legitima quem e a que campo pertencem
certos protagonistas. E há, muitas vezes, a incompreensão deste facto: enquanto
um “especialista” (ou alguém a que noutros tempos chamaríamos “intelectual”)
não pode, sem ficar diminuído no seu prestígio, ser apanhado pelos seus pares
no discurso ignorante ou fraudulento, o indivíduo da classe mediático-populista
nunca é destituído, mesmo que insista em dizer idiotices. Ele mantém-se por
força de uma imagem e de um “estilo”. Pode ser um exemplo de estupidez, mas a
estupidez, disse uma vez Schiller, nem os deuses a podem combater.
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