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sábado, 31 de outubro de 2015

SABER LER



Público (aqui)

Sem sombra de pecado
António Guerreiro
Sobre Miguel Relvas, não me vem nada à mente. Mas, tendo deparado há uma semana com um artigo dele neste jornal (servia-lhe de título um decorativo quiasmo: Entre a força da razão e a razão da força), fui levado ao exercício ocioso de tentar perceber esta reaparição. Segundo os preceitos de uma moral antiga e dos códigos não escritos daquilo a que os franceses chamam bienséance, esta “figura” teria de expiar em silêncio a sua “culpa”, que não é nenhuma culpa trágica, mas é inibitória porque entra no território da vergonha, como acontece a quem fica nu numa praça pública. Mas a salvação que dantes se obtinha pela retirada obtém-se agora pela exposição mediática. A mediocracia e o clero que a governa têm um poder amnésico e de branqueamento. Miguel Relvas pode ter passado de fugida pela universidade, mas, como muitos dos seus pares, aprendeu por observação directa que o mundo separado e organizado através dos media, a que Guy Debord chamou “espectáculo”, funciona de acordo com esta regra: “O que aparece é bom, o que é bom aparece”. Ele sabe que para reconquistar a bondade, para obter a reparação com toda a leveza, só precisa de aparecer ostensivamente. A exposição transforma-se num valor e garante a recuperação de uma imagem para além do bem e do mal. Se, porém, oferecermos alguma resistência a este processo que consiste em manipular a percepção colectiva e apoderar-se da memória, até a fotografia do autor do artigo passa a ser vista a uma outra luz: o que vemos nela, obstinadamente, é uma figura que ostenta um sorriso onde se mistura o cinismo com a inconsciência de um cartoon, como se uma personagem de Robert Walser se viesse cruzar com um boneco saído dos estúdios Disney. Um artigo excelente, mesmo tendo por título um quiasmo pindérico, seria a única coisa capaz de interromper este olhar cruel sobre a fotografia. Mas ele é apenas indigente, de maneira que não conseguimos levantar o olhar da fotografia e deixar de ver nela um instrumento da estratégia da exposição branqueadora. Temos um texto para ler, mas interpõe-se a pessoa do seu autor. Para a maioria dos leitores, esta percepção tem certamente o seu lado paródico, mas quem, por profissão e empenhamento político-intelectual, se preocupa com as questões do jornalismo é levado a pensar, a partir daqui, nalgumas questões mais gerais. Os jornais ditos de “referência” (se isso significa hoje alguma coisa) fizeram do eclectismo uma profissão de fé ou uma tentativa de não excluir ninguém, para se dirigirem a um universo muito alargado de leitores. Daí a impressão que temos de que há “quotas” para toda a gente se sentir representada, sobretudo nas secções de opinião. E este carácter aparentemente abrangente estende-se a todo o jornal, de maneira que o que se obtém é sempre um produto demasiado híbrido, movendo-se num espaço da hesitação que visa contemplar o chamado “leitor médio”, cuja existência está tão atestada como a do unicórnio. E no que diz respeito aos temas da cultura, essa ideia tornou-se um terrível factor de exclusão. À força de querer agradar a gregos e a troianos, acaba-se por não agradar a ninguém. Diga-se, em boa verdade, que o pressuposto da “mediania”, ou mesmo do não-saber, está por todo o lado: o discurso político é elementar para o cidadão, tratado como uma criança, “perceber lá em casa”; os livros são editados, divulgados e comercializados a pensar em quem geralmente não quer saber de livros; e o melhor é nem querer saber o que manifestam as “manifestações culturais”.

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