Público (aqui)
OPINIÃO – ESTAÇÃO
METEOROLÓGICA –30/10/2015
Sem sombra
de pecado
António Guerreiro
Sobre Miguel Relvas, não me vem nada
à mente. Mas, tendo deparado há uma semana com um artigo dele neste jornal
(servia-lhe de título um decorativo quiasmo: Entre a força da razão e a razão da força), fui levado ao exercício ocioso de tentar perceber esta reaparição.
Segundo os preceitos de uma moral antiga e dos códigos não escritos daquilo a
que os franceses chamam bienséance, esta “figura” teria de expiar
em silêncio a sua “culpa”, que não é nenhuma culpa trágica, mas é inibitória
porque entra no território da vergonha, como acontece a quem fica nu numa praça
pública. Mas a salvação que dantes se obtinha pela retirada obtém-se agora pela
exposição mediática. A mediocracia e o clero que a governa têm um poder
amnésico e de branqueamento. Miguel Relvas pode ter passado de fugida pela
universidade, mas, como muitos dos seus pares, aprendeu por observação directa
que o mundo separado e organizado através dos media, a que Guy Debord chamou
“espectáculo”, funciona de acordo com esta regra: “O que aparece é bom, o que é
bom aparece”. Ele sabe que para reconquistar a bondade, para obter a reparação
com toda a leveza, só precisa de aparecer ostensivamente. A exposição
transforma-se num valor e garante a recuperação de uma imagem para além do bem
e do mal. Se, porém, oferecermos alguma resistência a este processo que
consiste em manipular a percepção colectiva e apoderar-se da memória, até a
fotografia do autor do artigo passa a ser vista a uma outra luz: o que vemos
nela, obstinadamente, é uma figura que ostenta um sorriso onde se mistura o
cinismo com a inconsciência de um cartoon, como se uma personagem
de Robert Walser se viesse cruzar com um boneco saído dos estúdios Disney. Um
artigo excelente, mesmo tendo por título um quiasmo pindérico, seria a única
coisa capaz de interromper este olhar cruel sobre a fotografia. Mas ele é
apenas indigente, de maneira que não conseguimos levantar o olhar da fotografia
e deixar de ver nela um instrumento da estratégia da exposição branqueadora.
Temos um texto para ler, mas interpõe-se a pessoa do seu autor. Para a maioria
dos leitores, esta percepção tem certamente o seu lado paródico, mas quem, por
profissão e empenhamento político-intelectual, se preocupa com as questões do
jornalismo é levado a pensar, a partir daqui, nalgumas questões mais gerais. Os
jornais ditos de “referência” (se isso significa hoje alguma coisa) fizeram do
eclectismo uma profissão de fé ou uma tentativa de não excluir ninguém, para se
dirigirem a um universo muito alargado de leitores. Daí a impressão que temos
de que há “quotas” para toda a gente se sentir representada, sobretudo nas
secções de opinião. E este carácter aparentemente abrangente estende-se a todo
o jornal, de maneira que o que se obtém é sempre um produto demasiado híbrido,
movendo-se num espaço da hesitação que visa contemplar o chamado “leitor
médio”, cuja existência está tão atestada como a do unicórnio. E no que diz
respeito aos temas da cultura, essa ideia tornou-se um terrível factor de
exclusão. À força de querer agradar a gregos e a troianos, acaba-se por não
agradar a ninguém. Diga-se, em boa verdade, que o pressuposto da “mediania”, ou
mesmo do não-saber, está por todo o lado: o discurso político é elementar para
o cidadão, tratado como uma criança, “perceber lá em casa”; os livros são
editados, divulgados e comercializados a pensar em quem geralmente não quer
saber de livros; e o melhor é nem querer saber o que manifestam as
“manifestações culturais”.
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