Discurso de Ana
Margarida de Carvalho,
no Encontro de
Jerónimo de Sousa com as Mulheres,
na Casa do Alentejo
Bem-vindas e bem
vindos! Obrigada por terem vindo, para mim, acreditem, é uma grande honra estar
aqui.
Eu, enquanto
jornalista e escritora, gosto muito de palavras mas, sem querer parecer a Maria
Luís Albuquerque, nem querer maçar-vos demasiado, venho aqui falar-vos de
números.
(só para estabelecer o cenário dos últimos 5
anos, e que me faz acreditar que vivemos hoje num país em estado de emergência,
fruto de um ciclo recessivo e de uma maldição que não nos abandona, a da dança
das cadeiras PS/PSD, e que em tão pouco tempo empobreceu o país e o fez
regredir em termos sociais, em termos de direitos laborais, de igualdade de
direitos, e culturais também, de mentalidades… enfim, em termos civilizacionais
teremos regredido uma década e meia: Vamos ver os anos que demorará a nossa
sociedade a sarar, a cicatrizar, e esta geração hipotecada a recompor-se… )
E os números são
estes:
-meio milhão de
empregos destruídos,
-meio milhão de
emigrados,
-800 mil portugueses
em estado de pobreza,
-600 mil crianças a
quem foi retirado o abono de família,
E mais: famílias
assaltadas, famílias amputadas, capital social delapidado, cortes trágicos na
cultura, na educação e na saúde, e uma quantidade de jovens, não só jovens,
adultos também, que vivem a ilusão de um emprego, em estágios não remunerados,
ou remunerados a níveis atentatórios da dignidade, em situações abusivas, numa
espécie de escravatura consentida. Que é como quem diz, «olha, mais vale isto
que nada»… «mais vale andar entretido»….
Não. O «antes isso que
nada» não pode ser admitido, com o paternalismo com que dantes se dizia «olha,
pelo menos não se mete na droga».
Os nossos patamares
estão tão rasteiros, nivelaram-nos tanto por baixo, que já se toleram
raciocínios destes como se fossem normais. E não, não é normal.
Noutro dia, uma colunista dizia que não se
devia falar de desemprego mas de «entre-projectos». E não se esqueçam de outros
léxicos, novas semânticas, expressões ultrajantes: quando nos chamaram
«piegas», quando nos mandaram «sair para fora da zona de conforto» (isto queria
dizer emigração), quando aquele caridosa senhora veio falar dos «profissionais
da pobreza». Tudo isto aconteceu. E não, o «antes isto que nada» não é normal.
Assim como não é normal, passados 41 anos de democracia, termos de voltar a
insistir e a defender o óbvio.
Não valem a pena os
eufemismos, nem estas requalificações, reajustamentos (lembram-se que se usava
esta expressão «reajustamento» quando se queriam referir a diminuição de
salários): agora somos nós que dizemos não aos vossos reajustamentos lexicais e
aos vossos inconseguimentos. O que está em causa tem nome e vem no dicionário:
chama-se desemprego, chama-se pobreza, chama-se indigência, chama-se miséria, chama-se
afronta à dignidade.
O trabalho é uma coisa
muito séria, não se trata de uma entretenga, ou de um hobby nem de um
passatempo, é fonte de riqueza de um país, deve ser encarado como um direito: à
realização pessoal de cada um, um direito a uma realização colectiva.
Ora, eu queria incidir
a minha intervenção na questão das mulheres neste mundo de precariedade. E
desse bem raro que é um emprego, sobretudo quando é digno, estável e compatível
com a nossa formação e habilitação.
Muitas vezes me têm
perguntado como é ser jornalista e mulher, como é ser escritora e mulher? E o
que me parece inadmissível e me deixa com um desgosto considerável é como é que,
no século XXI, em plena Europa, num Estado de Direito, esta questão ainda se
coloca. Mas coloca.
E o que eu posso dizer
sobre isso é que as mulheres, neste mundo de precariedade, têm de esforçar o
dobro para conseguir metade.
E apercebi-me disto
justamente quando cheguei ao mercado de trabalho. Até aí tinha andado
distraída, não fui educada assim, na minha família, eu e os meus primos,
rapazes e raparigas, tínhamos as mesmas tarefas e andávamos todos calçados com
botas iguais. Agora basta ver: nos jornais, redacções maioritariamente
femininas, e raramente ouvimos falar de uma directora de jornal, quanto muito
editoras e subdiretoras. Os directores são homens.
Antes do 25 de Abril,
as mulheres ganhavam menos 40% do que os homens. Há 41 anos, não foi assim há
tanto tempo (o salto de duas gerações), as mulheres não tinham direitos de
cidadania, eram impedidas de coisas tão básicas que, hoje, nos parecemos
transportados para tempos ainda mais remotos ou para outras latitudes… O marido
podia proibir que a mulher trabalhasse fora de casa, podia rescindir-lhe o
contrato; por mais que estudassem elas não tinham acesso à carreira da
magistratura, diplomática, militar, polícia… A carreira de enfermeiras ou
hospedeiras implicava limitações e restrições de direitos, como o de casar…
Podia ser repudiada pelo marido no caso de não ser virgem, o marido tinha
direito de lhe abrir a correspondência, mães solteiras não tinham protecção
legal, havia a distinção de «filhos ilegítimos», se o marido apanhasse a mulher
em flagrante adultério e a matasse podia até não ir preso…
E falamos de taxas de
analfabetismo, nos anos 70, na ordem dos 33, 6%. Passo a ler, com bastante
repugnância e sei que vai ser doloroso, algumas palavras de Salazar. Referia-se
ele aos países e aos lugares onde a mulher casada concorria com o trabalho do
homem (vejam só, tamanho atrevimento)…: «a instituição da família, pela qual
nos batemos, como pedra fundamental de uma sociedade bem organizada, ameaça
ruína. E Portugal é um país conservador, paternalista – e Deus seja louvado-
atrasado, termo que eu considero mais lisonjeiro do que pejorativo».
E são verdadeiramente
terríveis estas ressonâncias, estes ecos que ficam do discurso de agora, o
discurso do país dos pobrezinhos, do sacrifício, dos obedientezinhos…
O famoso artigo 13ª da
constituição (todos são iguais perante a lei) chegou em 1976. Pois, mas não: a
trabalho igual continua a não corresponder salário igual - um princípio que nos
parece tão elementar.
E no entanto, mais
números:
- em média as mulheres
ganham menos 18% de remuneração base do que os homens (na UE, as mulheres
ganham menos 16,2% do que os homens )
E podem até perguntar:
Estas disparidades salariais são mais elevadas entre profissões de menor qualificação?
Não, pelo contrário. Mais estudos equivalem a menos salários. As disparidades
aumentam entre os quadros superiores, e entre licenciados. Aqui as mulheres
auferem, segundo dados recentes, menos 27,8% a 30,2% do que os homens.
Claro que nos cargos
de níveis salariais muito altos as mulheres estão sub-representadas (refiro-me
aos cargos de decisão nas empresas). Apenas 9% de mulheres ocupa, por exemplo,
cargos de administração nas empresas do PSI 20. Muito menos de chefia.
Para ganhar o mesmo que os homens ganham num
ano, as mulheres teriam de trabalhar mais 65 dias.
Porém:
O número de doutoradas
duplicou; subiu em flecha, a partir de 2001, sensivelmente ao longo da primeira
década do anos 2000 ,o número de investigadoras 120% (são hoje 45% do total
nacional).
As desigualdades
salariais agravaram-se.
E no entanto:
O ensino superior é frequentado em 57% por
mulheres e 42 % por homens.
No ranking mundial de
igualdade de direitos entre homens e mulheres, Portugal encontra-se em 34º
lugar. Nada de que nos possamos orgulhar.
Como vêem, não é só a Luísa, a tal a do
António Gedeão, que continua a subir a calçada, sobe, que sobe, Luísa, sobe a
calçada.
A doutora Luísa, a
engenheira Luísa, a professora doutora Luísa também sobem a sua rampa. E nunca,
mas nunca (se continuarem estas políticas e esta mentalidade) chegarão lá
acima.
E estas minhas
palavras são um pouco amargas e um pouco zangadas. Mas é impossível não ficar
zangada ou revoltada com o estado em que deixaram um país com tanto passado, e
agora um presente tão precário, como um chão carunchoso onde que não se pode
pisar... Eu não queria terminar assim. Até porque acredito numa alternativa, e
acredito na importância, e até na urgência, em alargar e fortalecer o grupo
parlamentar do PCP: temos muito tempo a recuperar, muita energia, muito
património, muito optimismo perdido, muitos direitos a resgatar…
E, há pouco tempo,
estive a ler umas palavras de Álvaro Cunhal sobre a importância da alegria, de
nunca perder a alegria, de como a alegria é fundamental para um povo. E sobre o
humor, em A Arte, o Artista e a Sociedade: «Faz falta permanentemente à sociedade
como elemento de descontracção de tensões e silenciamentos, como elemento
promotor da reflexão, como incisiva chamada crítica, rompendo constrangimentos,
hesitações e temores».
E há um cantautor, que agora está na moda
citar em discursos, que tem uma música chamada Dias Úteis: «Por pretextos
talvez fúteis a alegria é o que nos torna os dias úteis».
Portanto, não percam a
dignidade; não deixem que vos roubem a alegria…
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