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segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Notícias maltratadas, escondidas e/ou perdidas

Um recorde português

Foi graças a um dos canais portugueses ditos informativos, isto é, só acessíveis a quem não se conforma com receber no seu televisor apenas os quatro canais de sinal aberto, que os telespectadores puderam conhecer a notícia. Aconteceu na RTP Informação, durante um debate em que excepcionalmente o tema não era o futebol, e aí ficámos a saber que o nosso País é detentor de um recorde europeu pouco ou nada conhecido. É claro que já sabíamos que Portugal e os portugueses têm vindo a destacar-se no quadro internacional por muitos e variados feitos, alguns óptimos, outros nem tanto: são portugueses o melhor futebolista do mundo e o melhor treinador mundial da mesma arte, foi português o descobridor do caminho político para a presidência da Comissão Europeia, há dois ou talvez mais portugueses no topo do FMI após escalas na governação local, coisas assim e decerto outras de diferente índole. A agora revelada, porém, tem um outro sabor e um especial significado: Portugal é detentor do Recorde Europeu da Rotatividade Laboral. Para quem tenha dúvidas acerca do que isto significa, convém que nos apressemos a descascar a fórmula e a ver o que tem dentro: este recorde significa que os trabalhadores portugueses são, entre todos os que trabalham na Europa, os que mais estão sob o risco iminente de serem despedidos e substituídos por camaradas que também não se demorarão muito tempo naquele posto de trabalho e por sua vez serão substituídos por outros trabalhadores. Trata-se, pois, de um rodopio um pouco sinistro mas que decerto tenderá a beneficiar alguém: os empregadores (palavra que agora é de uso utilizar em vez de «empresários» e mais ainda em vez de «patrões», pois isto do manuseio vocabular tem importância política) que assim se vêem livres de compromissos a médio ou longo prazo com a mão-de-obra que arregimentam. 
Simplesmente viver 
Entende-se a intenção, mas convém que se entendam também as consequências deste «máximo europeu», como se diria em linguajar desportivo. Significa que, mais do que quaisquer outros entre os seus camaradas europeus, os trabalhadores portugueses estão, por carência de estabilidade laboral, impedidos de planearem as suas vidas, isto é, de terem filhos que não estejam em constante perigo de miséria, de terem uma habitação que não implique um permanente risco de despejo, até de sonharem com uma velhice com a tranquilidade mínima que uma vida de trabalho deveria garantir. É claro que a obtenção deste recorde tem também consequências que ultrapassam a área familiar: tem o senhor Presidente da República andado muito angustiado com a chamada questão demográfica, com o desequilíbrio etário da população portuguesa; apelou a senhora ministra das Finanças, aparentemente inspirada por antiquíssimas palavras do Senhor, a que os jovens portugueses se «multiplicassem»; mas é claro que nem os muito jovens nem os que já não o sejam tanto podem dar-se ao luxo, à verdadeira extravagância, de encomendarem filhos para mais cedo ou mais tarde os verem colocados não na roda dos enjeitados, como era de uso nos velhos tempos, mas sim no especial tormento que é a Rotatividade Laboral. Em verdade, não há terceira via neste como noutros casos: ou mantemos a posse deste recorde europeu que confere a Portugal uma tristíssima notoriedade, que em verdade é indício da desgraça de um povo decerto para benefício de alguém, ou devolvemos aos trabalhadores portugueses as condições de estabilidade laboral que lhes permitam simplesmente viver em condições mínimas de verdadeira humanidade. Sabemos quem optará pela manutenção do recorde. Sabemos também que o seu abandono é condição fundamental para a dignidade de um país independente que defenda os seus cidadãos da constante ameaça do desespero. Trata-se, pois, de rejeitar o tristíssimo recorde. O que para isso há a fazer, e com a adequada urgência, sabe-o decerto quem integra a classe trabalhadora portuguesa.


Correia da Fonseca 

TVisto, em
 - Edição Nº2176  -  13-8-2015

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