A entrevista
O jornalista é profissional de larga
experiência, repórter que bem se pode dizer das arábias mas também de ucrânias,
de grécias e de quaisquer outros lugares onde seja preciso fazer uma leitura
ocidental e atlântica dos acontecimentos, jornalista benquisto e apreciado nas
duas margens do oceano. Além do mais, estava como que em sua casa naquele canal
público agora redecorado e que por vezes parece ter-lhe sido entregue, ou aos
seus cuidados, para que ali possa fazer intensa prova pública dos seus méritos,
que não são poucos nem subestimáveis.
Não obstante, com tudo isto e o mais
que aqui se nos escapa, acontecia que o rosto do jornalista estava todo
contraído, encarquilhado numa expressão de aparente incompreensão que tenta
ultrapassar-se, da estranheza de quem encara um fenómeno raro e de compreensão
difícil. Contudo, diante dele apenas estava um homem a ser entrevistado. Para
mais, o entrevistado não oferecia dificuldades especiais, não era daqueles que
se entrincheiram por detrás de fórmulas pomposas e confusas: respondia
abertamente e com nitidez. Quase se poderia dizer que cumpria a antiga
exigência de Mateus: «seja a tua palavra sim sim, não não, tudo o que vier a
mais é malícia.» Ainda assim, porém, não parecia que o jornalista estivesse a
gostar ou, talvez mais provavelmente, a entender.
É que o entrevistado tinha uma dupla
característica, digamos assim, que talvez dificultasse o entendimento: era
comunista e durante vários anos havia sido padre, para mais não dando quaisquer
sinais de arrependimento por esse seu passado.
Sólidos
Acresce que dizer que o entrevistado
era comunista é, na circunstância, dizer pouco: o entrevistado era o candidato
à presidência da República que o Partido Comunista Português apoia. Aliás,
ouvindo-o era fácil reconhecer essa sua circunstância ou pelo menos a sua
inteira compatibilidade com ela. Lá estava a clara denúncia da exploração do
homem pelo homem, verdadeiro pecado original da sociedade capitalista em que
por enquanto vivemos; lá estavam o sentido da partilha e da fraterna
solidariedade que é o objectivo último do projecto comunista; lá estava a
indignada denúncia dos fariseus e dos seus crimes, dos vendilhões e da sua
ganância, dessa denúncia decorrendo necessariamente a justeza de expulsar tal
gente do amplo templo que é a sociedade em que vivemos.
Decerto por tudo isto, o rosto do
jornalista, coitado, exibia-se contraído e como que intrigado, talvez
incrédulo, porventura curioso. De qualquer modo, ele não estava ali para
facilitar a prestação pública de um candidato comunista, não será decerto para
isso que lhe pagam, e por isso decidiu confrontar um pouco o entrevistado com o
seu passado e, implicitamente, com as suas presumíveis convicções, pretéritas
ou actuais. Foi um mau caminho. É que, pelos vistos o jornalista não sabe nem
sonha que o comunismo tem valores, princípios e objectivos não apenas
compatíveis com a ética de um verdadeiro cristão mas até coincidentes com ela.
É que ser cristão não é tanto ser especialmente devoto de uma santa ou de um
santo quanto ser fiel à solidariedade com o nosso próximo, isto é, com o nosso
camarada.
Na ignorância disto, porque decerto
nunca lho ensinaram, estava o jornalista com aquele ar um pouco pasmado. Nem é
absurdo supor que estivesse preocupado: o entrevistado estava a sair-se muito
bem, quem o ouvisse até poderia votar nele. Tentou então colocar o entrevistado
em contradição com uma conhecida síntese marxista parecendo-lhe que por aí
conseguiria algum êxito. Aconteceu, porém, que o entrevistado lhe explicou com
paciência verdadeiramente evangélica o conteúdo da fórmula utilizada por Marx.
Decididamente, aquela não seria uma entrevista feliz para o combativo
jornalista. O final do diálogo aconteceu pouco depois e ele lá ficou, talvez a
recuperar do desaire. Talvez a aperceber-se concretamente de que os comunistas
são sólidos.
Correia da
Fonseca
É um gosto ler coisas destas! Não entrarem elas em todas as casas...
ResponderEliminarverdade!
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