Marx e a
imprensa
«Queremos
que os operários nos compreendam»
por Fernando Correia
Marx não foi um activo colaborador
da imprensa que produziu livros, nem um investigador e cientista que escreveu
para os jornais. Conciliou as duas coisas, potenciando-as mutuamente, com o
resultado que define uma obra genial: única pela sua diversidade, dimensão,
profundidade e influência – inseparável em si própria do contributo de Engels,
projectada no futuro pelos desenvolvimentos de Lénine.
Numa reunião do Comité de Bruxelas
em que Marx participava (Março 1846), um seu opositor, o socialista utópico
Weitling, começou a utilizar «raciocínios vagos onde transparecia o desprezo
pela teoria revolucionária», o que levou Marx, irritado, a ripostar que «dirigir-se
aos operários sem ideias rigorosamente científicas e sem doutrina positiva era
brincar à propaganda tão fútil como desonesta, que pressupõe, de um lado um
profeta inspirado e, do outro, unicamente burros ouvindo-o de boca aberta».
Perante a insistência provocatória de Weitling, criticando «os doutrinários
insensíveis aos sofrimentos do povo», Marx levantou-se imediatamente e
clamou: «Nunca a ignorância ajudou fosse quem fosse!» 1.
Engels, numa carta (1890) ao filósofo
e economista alemão Conrad Schmidt, e referindo-se à presunção de certos jovens
intelectuais alemães próximos do partido que não se davam ao trabalho de
estudar a história da economia, das formações sociais, etc., escrevia: «Estes
senhores têm por vezes a ideia de imaginar que tudo é suficientemente bom para
os operários». E sublinhava: «Se estes senhores soubessem que Marx
avaliava as suas melhores obras ainda insuficientes para os operários e
considerava um crime oferecer aos operários qualquer coisa que estivesse aquém
do perfeito!». 2
Por um momento, saltemos atrás no
tempo. Inscrito aos 18 anos na Faculdade de Direito da Universidade de Berlim,
Marx foi-se interessando cada vez mais pelas questões filosóficas e acabou por
se doutorar na Universidade de Jena com uma tese sobre os filósofos
materialistas gregos Demócrito e Epicuro. Mas não seguiu nem a carreira
académica nem se deixou seduzir pela filosofia idealista então dominante nos
meios universitários. Dedicou-se ao estudo da ciência, da arte e... fez poemas.
Neles se exprimiam já o seu espírito combativo e as suas preocupações
humanistas, mesmo os que eram dedicados a Jenny, sua namorada e futura
companheira (casariam em 1853): «Kant e Fichte vagueiam de bom grado pelo
éter, / Procuravam aí um país distante, / Eu, contudo, procuro compreender,
bem, / Aquilo que encontrei na rua!» 3.
Estas duas efemérides, distanciadas
quase duas décadas – a reunião de Bruxelas e o poema juvenil – ilustram bem a
convicção de Marx, desde cedo pressentida e depois assumida, de que a
transformação da sociedade não poderia ser construída sem que os explorados, os
«da rua», ganhassem a consciência não só da necessidade e possibilidade dessa
transformação, mas também do que era preciso para o conseguir.
Ser popular, ter popularidade, procurar a clareza
Marx era sensível à necessidade de
estar próximo do povo, convicto de que as transformações sociais só seriam
possíveis com a vontade e a participação das massas. Em breve encontraria na
prática jornalística um dos caminhos para o conseguir. Entendia que a imprensa
democrática devia revestir-se de duas características: por um lado ser
popular, enquanto defensora dos interesses fundamentais das massas, as suas
aspirações, pensamentos e sentimentos, em oposição aos senhores da terra e do
dinheiro e ao seu domínio sobre a política, a economia e a justiça; por outro
lado, ter popularidade, no sentido em que a escrita deveria ser clara,
simples e compreensível, ainda que sem cedências ao rigor científico e
ideológico. Dizia Marx: «Queremos que os operários nos compreendam». 4
Mas tanto ele como Engels – os dois
sempre colaboraram de perto também no trabalho com a imprensa – tinham noção do
tipo de leitores para quem escreviam e sabiam adaptar-se às diferenças quer na
linguagem quer nos conteúdos. Por exemplo, entre a Gazeta Renana
(1842/43) e a Nova Gazeta Renana (1848/49) a linguagem mudou: o primeiro
era principalmente lido por fracções da pequena burguesia liberal e operários
de vanguarda, enquanto o segundo, numa altura em que a luta de classes estava
muito mais avançada e o país vivia uma situação revolucionária, se assumia
claramente como um jornal operário e revolucionário.
Tinham igualmente o cuidado, como
observa Gurevich, com as diferenças entre escrever para um jornal diário como a
NGR, mais virado para a actualidade, os acontecimentos, ainda que devidamente
contextualizados, ou para uma revista teórica, que exigia um tratamento mais
aprofundado, mais atento às causas e às consequências, ligado menos aos factos
e mais aos processos. Como foi o caso da NGR – Revista de Política e
Economia, que imediatamente se seguiu ao fim, imposto pela censura, da NGR.
«Um artigo escrito para uma revista teórica podia não ser compreendido por
muitas das pessoas que liam um jornal de massas. Inversamente, uma reportagem
sobre acontecimentos de actualidade escritas para um jornal podia não cumprir o
seu objectivo se publicado numa revista». Numa altura em que os géneros
jornalísticos ainda não estavam claramente definidos, nos textos de Marx e
Engels reflectia-se uma concepção que mantém toda a actualidade.
Com o mercado editorial igualmente
desestruturado, sem a consistência que viria a alcançar décadas mais tarde,
várias das obras mais importantes de Marx foram publicadas em brochuras e
panfletos, mas também, totalmente ou em parte, na imprensa, nomeadamente na Nova
Gazeta Renana, no fim dos anos 40 e início de 50. Por exemplo: «A Burguesia
e a Contra-Revolução» (2.º artigo), NGR (15.12.1848); «Trabalho Assalariado e
Capital», separata da NGR (1849); «As lutas de classes em França de 1848 a
1850», NGR – Revista de Política e Economia, n.ºs 1, 2, 3, 4, 5-6
(1850); «O 18 de Brumário de Napoleão Bonaparte», Die Revolution, jornal
em língua alemã publicado em Nova Iorque (1852).
Os cuidados com a elaboração dos
materiais escritos alargava-se às intervenções orais em congressos,
conferências e reuniões com trabalhadores, muitas vezes editadas em panfletos e
brochuras para mais ampla e fácil divulgação. E é significativo verificar até
que ponto tais preocupações serão mais tarde prosseguidas por Lénine, ao longo
da sua também intensíssima ligação como responsável e redactor de muitas
dezenas de jornais e revistas, o que mostra até que ponto estamos aqui perante
um princípio base e um objectivo permanente da ligação às massas. Que, também
em Lénine, se alargava a todo o tipo de contactos. Nos últimos anos de vida,
quando lhe falavam da acessibilidade das suas intervenções em reuniões e
comícios, Lénine recorda: «Só sei que (...) pensava constantemente que os
operários e camponeses eram os meus ouvintes. Queria que eles me
compreendessem. Onde quer que um comunista fale, deve pensar nas massas, deve
falar para elas.» 5
O objectivo de Marx ser claro
casava-se bem com um estilo de escrita que lhe era próprio. Marx tinha a
consciência de que o título se revestia de grande importância para prender a
atenção do leitor e recorreu a diversas formas para o conseguir. Por exemplo, o
título do panfleto «Senhor Vogt» é simples e tem, como assinala Gurevich, «um
toque de desprezo», correspondendo ao conteúdo do texto. A preocupação pela
atractividade dos títulos abrangia outras soluções, quer de natureza indicativa
(«A situação dos operários alemães»), quer afirmando desde logo a posição do
autor («A baixeza profissional alemã»), quer satírica («As façanhas da dinastia
Hohenzollern»), quer ainda apelando a uma acção concreta («Não mais
Impostos!»).
Uma outra característica do estilo,
tanto nos títulos como nos textos, e em que Marx se revelou particularmente
hábil, era o recurso a trocadilhos, aforismos e expressões epigramáticas, cuja
brevidade, acutilância e muitas vezes tom satírico e mordaz, davam clareza e
eficácia aos seus pensamentos. Exemplos: «A crítica moralizante e a moral
criticante»; «Um grande talento sem convicções produz um velhaco»; «Um fim que
necessita de meios injustos não é um fim justo»; «Uma imprensa livre é o olho
vigilante do espírito do povo»; «O punho é o derradeiro argumento da coroa, o
punho será o derradeiro argumento do povo».
Entretanto, o Marx de O Capital
não duvidava de que muito do que escrevia, nomeadamente sobre temas filosóficos
e económicos, não seria logo à primeira de fácil apreensão para muitos
leitores. Procurava ser «popular» (a expressão é sua) até ao limite possível,
principalmente na imprensa, mas não abdicava do rigor científico. No Prefácio à
1.ª edição alemã de O Capital (1867) afirma: «À excepção da secção sobre
a forma-valor não se poderá (...) acusar este livro de difícil
inteligibilidade»; mas mais adiante faz questão de acrescentar: «Suponho,
naturalmente, leitores que querem
aprender algo de novo e que, portanto, também querem pensar por si». (Sublinhados nossos). E este texto de
introdução à sua obra magna termina assim: «Todo o juízo da crítica científica
é para mim bem-vindo. Face aos pré-juízos da chamada opinião-pública, a quem
nunca fiz concessões, vale para mim, como anteriormente, a divisa do grande
florentino: Segue il tuo corso, e lascia dir le genti! (Segue o teu
caminho e deixa falar as gentes. Divisa adoptada por Dante em A Divina
Comédia) 6.
O ferro «já está quente»... e a teoria e a prática
A intervenção de Marx e de Engels na
imprensa é inseparável da sua actividade nas tarefas de mobilização e
organização, nomeadamente nos anos 40. Numa carta (Novembro de 1844) enviada a
Marx por Engels de Barmen, sua terra natal, onde episodicamente se encontrava,
dá conta ao amigo da decisão sua e de outros camaradas de se organizarem e
mobilizarem no sentido de uma participação activa em reuniões públicas promovidas
pela burguesia para a criação de «Associações para a promoção da classe
operária», cujo objectivo era distrair e afastar os trabalhadores da luta pelos
seus direitos. A tarefa teve êxito, e o facto é que os estatutos propostos pelo
clero e os patrões foram derrotados pela acção de Engels e seus camaradas.
Dois meses depois, nova carta a
Marx, em que Engels confessa que «aquilo que especialmente me alegra» é
«este foro de cidadania comunista na Alemanha, que se tornou agora um facto
consumado. (...). Jornais, semanários, revistas mensais e trimestrais e
as reservas concentradas da artilharia pesada, está tudo na melhor ordem. Tudo
tem corrido depressa! A propaganda clandestina também deu os seus frutos...».
Uma revista que outrora se publicava como separata da Gazeta Renana,
acrescenta Engels, «já está também nas nossas mãos». E continua, no seu
estilo expedito: «Mas aquilo de que actualmente temos maior necessidade é de
algumas obras de uma certa envergadura, a fim de proporcionar uma base de apoio
sólido a todos os nossos demi-savants, desejosos de saber mais, que
estão cheios de boa-vontade mas não podem desenvencilhar-se sozinhos. Dispõe-te
a terminar o teu livro de economia política; pouco importa que muitas páginas
não te satisfaçam totalmente: os espíritos estão maduros e precisamos de bater
no ferro, porque já está quente.» O livro era a Crítica da Política e da
Economia Política, que Marx nunca chegaria a completar. 7
Estas cartas de Engels não têm um
interesse meramente episódico, exemplificando bem a relação entre a imprensa e
a acção no terreno. Simultaneamente, a necessidade de «algumas obras de
certa envergadura» denota a consciência da importância de «armas teóricas»
que enriquecessem e completassem o trabalho político de organização. A verdade
é que seria redutor pensar a participação de Marx na imprensa apenas como uma
forma de chegar às massas. O significado da imprensa tem muito a ver com o
lugar onde a evolução do pensamento de Marx se cruza com a questão da ligação
entre a teoria e a prática. A imprensa contribui de forma fundamental para
constituir e dar consistência à relação dialéctica entre uma e outra,
afirmando-se, juntamente com as obras teóricas, como um dos instrumentos dessa
frutuosa e enriquecedora interligação.
Ao longo dos anos as situações
políticas, sociais e económicas iam mudando, o que implicava sucessivas
adequações das análises e da escrita na imprensa às situações concretas.
Simultaneamente, o próprio Marx, ao mesmo tempo que escrevia para a imprensa ia
avançandono seu pensamento teórico através da investigação, das leituras, da
reflexão, do estudo. Sendo certo, porém, que para esses avanços se revelaram de
grande importância as necessidades e obrigações implícitas a uma colaboração
nos jornais que estivesse atenta à actualidade e aos factos, mas recorrendo a
um enquadramento sociológico, histórico e político.
Por um lado, a escrita na imprensa
foi acompanhando não só a alteração das conjunturas, mas também a evolução do
pensamento do autor; por outro lado, o constante e sucessivo confronto de Marx
com as situações concretas, através dos seus contactos, encontros e debates com
as associações e outras organizações operárias e de trabalhadores, mas também
devido à sua permanente colaboração nos jornais e ao trabalho específico que
essa tarefa implicava, lhe permitiram alargar, enriquecer e aprofundar o seu
próprio pensamento teórico.
Marx, tal como Engels, desde cedo
deu importância à participação na imprensa, na medida em que isso lhe
proporcionava uma intervenção directa junto dos leitores mas também conhecer ao
vivo as realidades económicas e sociais, contactar directamente e no
local os trabalhadores. Engels – que, aliás, tinha especial gosto em fazer
reportagens – recordaria, já depois do desaparecimento do amigo, «sempre ter
ouvido a Marx que pela sua ocupação com a lei de roubo da madeira e com a
situação dos camponeses de Mosela (temas que Marx acompanhara quando em
1842 trabalhava na GR) tinha sido dirigido da simples política para as
relações económicas e tinha chegado ao socialismo». 8 Foram dezenas os jornais e revistas onde Marx colaborou, foram muitas e
muitas centenas os artigos que escreveu. Só na NGR, que resistiu à repressão um
ano (Maio 1848 a Maio 1849), publicou perto de centena e meia de artigos, mais
vários outros em colaboração com Engels; os temas abordados, por ordem
decrescente, foram a política interna prussiana, análises teóricas, perfis de
políticos, declarações e apelos em nome do jornal, política estrangeira e
relatos dos trabalhos parlamentares. 9 Assume especial significado a
colaboração de Marx no New-York Daily Tribune, jornal da burguesia
liberal americana, considerado então como o maior diário do mundo, com uma
tiragem de 250 000 exemplares. Pela duração – de Agosto de 1852 a Fevereiro de
1862; pela quantidade de artigos publicados – perto de 500, sendo que uma
pequena parte foi escrita por Engels ou por ambos, devido à doença de Marx;
pela temática – tendo sido convidado para ser correspondente em Londres, onde
Marx estava exilado, acabou por transformar-se, nas palavras de Engels, em
«toda uma série de artigos compreendendo exposições da situação política e
económica dos vários países europeus». 10 Marx foi obrigado a um aturado
trabalho de recolha de informação e de estudo da situação internacional,
extremamente útil para o aprofundamento das realidades sociais, económicas e
políticas de diversos países dos vários continentes e a sua utilização para a
elaboração das suas obras.
Marx foi essencial para o jornalismo
militante e revolucionário, mas as implicações da prática jornalística não
foram menos essenciais para o Marx teórico e fundador do comunismo científico.
Notas
(1) Karl Marx. Biografia,
Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1983, p. 128.↲
(2) Marx, Engels. Correspondance,
Éditions du Progrès, Moscou, 1976, p. 431.↲
(3) Karl Marx. Biografia, ed.
cit., p. 24. No original: «Kant und Fichte gern zum Ather schweifen / Suchten dort ein
fernes Land / Doch ich such nur tuchtig zu begreifen / Was ich-auf der Strasse
fandt!».↲
(4) Semyon M. Gurevich, Karl Marx the Publicist, 1982, International
Organization of Journalists.↲
(5) Lenine. Biografia,
Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1984, p. 323.↲
(6) Marx/Engels. Obras Escolhidas
em 3 tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1983, pp.
90 e 93.↲
(7) Engels. Biografia,
Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1986, p. 59; Marx,
Engels. Correspondance, ed. cit., pp. 13, 15 e 508 (nota 6).↲
(8) Karl Marx. Biografia, ed.
cit., p. 146.↲
(9) Trin Van Thao, Marx, Engels et le Journalisme Révolutionaire, Éditions
Anthropos, 2.º vol.,1979, pp. 235-237.↲
(10) Karl Marx. Biografia,
ed. cit., p. 319 e Rubel, Maximilien, Karl Marx. Oeuvres. Économie I,
Chronologie, pp. LVIII-CLXXVI.↲
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