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sábado, 21 de janeiro de 2017

O estado da arte...

Talvez para a esmagadora maioria dos cidadãos tenha passado desapercebido o 4º Congresso dos jornalistas. O que seria estranho, se não fosse de esperar. Terá a ver com o estado da arte...
Pelo nosso lado, quisemos informar-nos junto de quem tem a profissão de informar.
Neste relato, encontrámos resposta.
Triste. Preocupante. Transcrevemos. Apesar de extenso (porque vivido e sentido...) vale a pena ler.

TERÇA-FEIRA, 17 DE JANEIRO DE 2017
4º Congresso dos jornalistas: a fera amansada
Não me apetecia escrever sobre isto. Mas acho que deve ficar descrito.
De 6ª feira a domingo, e apesar da falta de tempo para os congressistas falarem (leia-se aqui), foi traçado um retrato pesado do que se passa nas redacções deste país.
Redacções depauperadas, despidas de pessoal mais velho, afastado por diversas razões; ritmos insanos de trabalho que mal dá tempo para pensar; uma multiplicação de plataformas para que se deve trabalhar, a um ritmo maluco, que cada vez mais transforma as redacções em linhas de montagem; uma agenda omnipresente que homogeniza a informação; um esvaziamento de conteúdo crítico das notícias produzidas, em detrimento de um trabalho jornalístico profundo, com investigação mais lenta que ponha em causa os verdadeiros problemas e que ainda por cima – como foi afirmado por directores de informação – até tem mercado; a fragilização contratual das redacções e a redução brutal dos salários, desadequada à qualificação crescente dos profissionais; precariedade que gera medo, pela perda do emprego, que pode ser substituído em elevada rotatividade por mão-de-obra jovem, mobilizada para a “produção de conteúdos”; e a cada vez maior interferência nesses conteúdos por parte das administrações, das direcções de informação, num progressivo condicionamento da informação; tudo isso faz perigar o trabalho jornalístico.
No Congresso participaram em média uns 300/400 jornalistas e bastantes dezenas de estudantes de comunicação, numa classe de 6 mil jornalistas.
E de cada vez que havia um depoimento, a descrever o que se vivia, as palmas elevavam-se numa ovação.
Os registos emocionais conquistavam a plateia. Parecia uma catarse, longamente acumulada e necessária de ser feita. Uma catarse que importava ser afunilada pelo Congresso, para um ponto, de modo a que se forjasse as condições de inversão deste terreno inclinado.
Mas os jornalistas não são dados a posições de força. Nem em defesa do respeito próprio. Os jornalistas têm um receio endémico que os leva a fazer coisas e a não fazer outras, tudo na direcção de uma letargia individual, de se deixar espezinhar em nome de qualquer coisa egoísta, sem orgulho de classe, sem nobreza de alma. Em geral, não se dão ao respeito.
E o que se passou no último dia de congresso foi um exemplo flagrante.
Depois de sessões dedicadas aos mais variados aspectos, em que houve tempo até para 19 directores de informação ou assessores de imprensa e agências de comunicação, o voluntarismo amador da comissão executiva do Congresso levou-a a programar apenas 3 horas (das 14h30 às 17h30) para apresentação, discussão e aprovação de propostas dos congressistas.
Pior: encavalitou a seguir a essas três horas (às 17h30) um “debate de encerramento” com o patronato, com o ministro da tutela, com a ERC, a Comissão da Carteira e o Sindicato dos Jornalistas.
A comissão executiva foi avisada antes de tudo de que o tempo era insuficiente e nada fez.
Quando criticada por ter posto a encerrar o Congresso o patronato responsável por todas as situações que se vivem nas redacções, foi dito que era a forma de os confrontar. O debate chamava-se: “E agora?” Mas aquela programação levantou polémica e durante o Congresso, por várias vezes, a comissão executiva esclareceu que esse debate não fazia parte do Congresso, que o Congresso se encerrava com as votações das propostas. Ou seja, era secundário.
Iniciou-se então o plenário para discussão e aprovação de propostas. A mesa não tinha qualquer experiência de condução de assembleias. E havia mais de 40 propostas.
Bastava ter feito contas simples para perceber que só a votação levaria mais de uma hora. E já nem se fala da sua discussão.
Usou-se uns 90 minutos a discutir a resolução final da comissão executiva. E que se chamava "final", antes mesmo de se aprovar as ditas propostas... Mas tudo bem, siga! Houve propostas alternativas ao texto da resolução, houve discussão boa e chegou-se a um texto final de consenso, aprovado por unanimidade.
Mas depois restavam outros 90 minutos para aquelas dezenas de propostas. E a comissão entrou em pânico: era claro que não haveria tempo, por causa do debate com o patronato.
O que foi feito? Em vez de telefonar aos convidados para os avisar que o debate ficava sem efeito por falta de tempo, a comissão executiva – com o argumento de “temos de ser responsáveis, convidámos as pessoas...” - tentou ingenuamente acelerar os trabalhos.
Limitou-se o tempo de intervenção a dois minutos. Mas, depois, a mesa quis votar uma suspensão dos trabalhos até o debate acabar. Face à recusa dos congressistas, propôs-se a simples votação das propostas, sem qualquer discussão.
Algo que eu nunca vi, nem mesmo nos tempos agitados do PREC...!
Um membro do Sindicato protestou. E a presidente da comissão executiva perdeu a cabeça e reagiu: "Estás a perder tempo!". Quando vários congressistas reagiram contra – poucos, entre os quais o ex-presidente do Sindicato Alfredo Maia e onde eu estive – a presidente da comissão executiva respondeu: “Já tiveram tempo mais do que tempo suficiente de ler as propostas que estiveram na Cloud durante o congresso. Desculpem, mas não vou fazer outro congresso”. O Alfredo Maia disse que queria pronunciar-se sobre 18 propostas. Os congressistas viraram-se contra esse grupo. Um membro da comissão organizadora, de cabeça perdida, acusou o ex-presidente do Sindicato, com algo assim: "Tu só queres é boicotar o debate dos patrões".
 Outros disseram que era o PCP a movimentar-se. Os ânimos azedaram.
Ou porque os ditos convidados estavam à espera, ou porque os congressistas não quiseram ter uma noite de trabalho (ao pé de mim alguém disse: "Nunca mais saimos daqui"), a maioria da assembleia aprovou a votação das propostas, de imediato, sem qualquer discussão...
E começou a votação, proposta a proposta. Mas a coisa não foi fácil. Votar 40 e tal propostas leva tempo. Não se pode votar tudo em bloco.
Ao fim de meia hora, um conhecido congressista - que saíra entretanto e deve ter encontrado os "convidados" no hall do S.Jorge - veio interromper os trabalhos e dizer que era inadmissível que os convidados estivessem lá fora à espera. A mesa informou que estava de mãos atadas pela decisão da assembleia: “Tem de ser”, disse o presidente da mesa. E continuou-se. O congressista saiu da sala, enfurecido.
Os jornalistas que tanto andaram a falar no Congresso que era necessário abrandar, aceitar o jornalismo com tempo, maturar, digerir, foram os primeiros a aprovar a mata-cavalos, sem debater consequências ou validade - até legal - das propostas. Era preciso fechar já, como se fosse um
 deadline. E depois logo se via.
Mesmo sem discussão, os trabalhos derraparam para as 19h-19h30. Mais de duas horas sobre a hora combinada do debate. Os congressistas saíram da sala e desmobilizaram.
 
Lá se montou então o palco e lá se chamaram os congressistas para dentro...
E o que aconteceu? O previsível.
1) Com oito pessoas em palco e um moderador, o debate não teve quase contraditório, à excepção do feito pela presidente do Sindicato. Os congressistas não tiveram espaço para colocar questões. O Congresso que aprovara uma moção a dizer que os jornalistas não deveriam aceitar conferências de imprensa sem perguntas, ficaram calados e tornaram-se numa assistência dócil, impávida. Todo o trabalho de moderação coube a Carlos Andrade que fez o papel de anfitrião, tal e qual como no programa televisivo Quadratura do Círculo. Que estranho.
 2) Algumas entidades patronais privadas – representadas por Francisco Balsemão (Impresa) , Proença de Carvalho (Global Media), Rosa Cullel (Media Capital), Américo Aguiar (Rádio Renascença) – tiveram a ousadia de lembrar o atraso acontecido. Balsemão disse qualquer coisa como: “Se o atraso foi provocado para que nos fôssemos embora, não surtiu efeito. Estamos aqui” . E esta frase arrebatou fortes palmas da assistência! Noutra ocasião, Balsemão disse algo parecido – “já que me fizeram esperar, falo mais um pouco” – e a assistência riu...
 
3) Sobre a precariedade em que se vive e que o Congresso tanto assinalara emotivamente, as entidades patronais disseram que era um mal necessário porque as empresas estavam numa tempestade perfeita entre a revolução tecnológica e a crise económica, que tudo levava à necessidade de embaratecer custos... E que tudo tinha de ser feito para defender as empresas, para que a precariedade de hoje pudesse diminuir a prazo. E a assembleia manteve-se em silêncio. Nem um ui. Tudo muito bem educado.
4) A presidente do Sindicato, com todo o capital que recolheu das sessões, em quem centrou os seus ataques? Na televisão pública. E fê-lo nas suas duas intervenções. Quase se assistiu a uma demissão em directo, com o ministro a dizer que os
 falsos recibos verdes da RTP eram da responsabilidade da administração e o presidente do conselho de administração a lembrar que a lei não lhe permitia contratar gente e que ainda tinham missões acrescidas. O sector privado mal foi beliscado e o único aspecto referido pela presidente do Sindicato foram os ilegais estágios curriculares de seis meses no grupo Impresa... Mas mereceu muitas palmas da plateia.
Nem uma pergunta por exemplo, sobre as consequências até para as empresas de se ampliar a espiral recessiva cortes de pessoal
degradação do produto baixas receitas corte de pessoal. Ou sobre todos os casos humanos retratados, ou até sobre quanto ganhavam as pessoas que ali estavam sentadas, face aos salários mais baixos praticados. Por exemplo, a Rosa Cullel da TVI ganha 500 mil euros anuais! Muitas dezenas de vezes mais que o salário mais baixo da sua televisão. Acharia ela que esse fosso é uma boa medida de gestão? Não, essa questão seria considerada demagógica pelos patrões e não foi feita. É melhor sermos civilizados. Ainda voltarei a este assunto noutro post.
Saí com uma sensação de que pouco vai servir tanta catarse que ali foi feita durante dias, porque na hora da verdade, os jornalistas sabem o que fazer.
Já a caminho de casa, encontrei pessoas que vinham a sair. E uma delas, um director, disse:
- Ficou claro que havia ali um grupo ligado ao PC que insuflou o número de propostas para impedir que a sessão dos patrões se realizasse...
 - Mas achas mesmo – perguntei eu - que foi uma estratégia propositada para apresentar propostas artificiais, só com esse fim?
- Sim, pareceu-me evidente – respondeu ele.
E ao que me disseram não foi uma visão isolada. E que terão achado bem aprovar propostas sem as discutir. Para se despacharem... É assim o jornalismo. Não queriam um congresso: queriam um
 evento...
Tenho pena desta classe. Talvez aquilo que alguns congressistas qualificaram de “exploração” e de “extorsão” leve a parte proletarizada desta classe – nas palavras da Diana Andringa - a organizar-se devidamente. Porque temo que o episódio deste fim de semana seja um prenúncio de que a classe média/alta do jornalismo sabe onde está.
Algo morreu nesta noite. Ou, se calhar, nunca chegou a renascer verdadeiramente.


POSTADO POR JOÃO RAMOS DE ALMEIDA ÀS 17.1.17 

EM

Ladrões de Bicicletas


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