Ah, o jornalismo!
A crise e o declínio dos jornais e
do jornalismo foram já longamente diagnosticados. Neste campo devastado, não há
se não precárias sobrevivências.
É certo que se deu um certo triunfo
do jornalismo para além da morte dos jornais e há hoje uma “jornalização”
generalizada. Mas este novo jornalismo de massas, com mais produtores do que
consumidores, instantâneo e hipertélico (isto é, ultrapassando os seus próprios
fins), já nada tem a ver com a ideia de constituição de uma esfera pública
racional. A actual jornalização intensiva está para o jornalismo como a
estetização — o mais poderoso factor de anestesia — está para a arte.
Confrontados com a torrente imparável de factores externos que configuraram uma
nova paisagem, os jornais (e todo o jornalismo) perderam a capacidade de autocrítica
ou recalcaram-na, seja porque gerir o quotidiano sob as novas condições já é
uma tarefa complicada, seja porque o pecado original da profissão é a
boa-consciência. Os jornais, diga-se a verdade, nunca foram muito dados ao
exercício autocrítico e só em circunstâncias excepcionais cederam a ele. Essa
falta acabou por se tornar uma marca identitária e adquiriu uma dimensão
monumental. Os jornais não só não se criticam a si próprios (fazem-no
certamente em privado, mas isso não é o mesmo que emergir publicamente com um
desejável e necessário ethosautocrítico), como seguem o tácito
acordo de não se criticarem uns aos outros. Na verdade, eles não se criticam,
nenhuma crítica vem do interior do campo jornalístico, mas não falta quem o
faça, no exterior. Criticar o jornalismo e mostrar muita desconfiança
relativamente a tudo o que se passa nesse campo é um desporto de massas. Nem
sempre as razões são fundamentadas, mas instalou-se e generalizou-se esta
convicção: jornalistas e políticos, ou melhor, políticos e pessoas que escrevem
em jornais, pertencem à mesma classe, funcionam segundo a mesma lógica e falam
a mesma linguagem. Alguém, com instrumentos conceptuais, saberá analisar esta
lógica mediática que resulta na uniformização e na asfixia do pensamento (na televisão,
os painéis de políticos-comentadores e comentadores-ideólogos são uma
caricatura grotesca desta situação). O cidadão intelectualmente menos
sofisticado, esse, passa logo ao desdém por aqueles que não fazem outra coisa
se não “aparecer”: na televisão, nos jornais, na rádio, em todo o lado. Não há
apenas uma linguagem política, há uma oligarquia de “mediáticos” que colonizou
a esfera pública para a tornar dócil e inofensiva. O campo político e o campo
jornalístico celebraram núpcias e os políticos instalaram-se nos media,
numa grande confraternização. O resultado está à vista: uma endogamia
político-jornalística. E o jornalismo ficou reduzido a uma encenação de
pluralismos (e um acesso por quotas e representatividades), tal como a
democracia se tornou uma política Potemkin. A mesma linguagem é partilhada por
uns e outros. É uma doxa que atinge o seu grau nauseabundo nos
“painéis” dos debates televisivos. Um modesto exemplo: como é que a palavra
“reforma” circula hoje com frequência na esfera pública para designar, muitas
vezes, o que é da ordem da contra-reforma? Porque os políticos anexaram essa
palavra e encontraram, no meio jornalístico, as condições de fraca consciência
crítica da linguagem que permitem repercuti-la acriticamente. E das palavras passa-se
às frases (maldita fraseologia!) e das frases aos grandes enunciados (maldita
ideologia!): o jornalismo é uma ressonância do discurso político e de outros
discursos. E sê-lo-á, inevitavelmente, se não for, em primeiro lugar, uma
crítica da linguagem.
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